sexta-feira, 27 de março de 2020

Dissociação

Meia noite e quarenta e três.
Eu leio um romance de banca de uma série longa que comecei ano passado, porque decidi que merecia. Hoje foi difícil. Dos dias de desespero, hoje foi o de pânico total: chorei no meio de uma aula por videoconferência, pensei em me cortar, abri o site e passagens pra comprar uma passagem e ir embora, chorei abraçada com a Denisse.
Eu merecia algumas horas sem pensar no mundo, no Brasil, no mestrado, na minha vida profissional ou na minha vida amorosa. Não sei de nada. Não posso fazer nenhum plano. Mas por um momento vou focar minhas energias em acompanhar um casal fictício fofinho.
Seu Manuel assiste TV no quarto dele e eu consigo ouvir a música de alguma propaganda triste. De repente, um estalo: eu estou longe de tudo. Essa não é minha casa. Eu estou aqui há seis meses, e ainda não é minha casa. Esses braços que eu olho nesse exato momento são estranhos, e estão crescendo. Eu engordei muito esses dias. O ar fica esquisito. Eu não sei o que estou fazendo aqui. Viro pra frente e vejo as fotos dos meus amigos e da minha família, penduradas na frente da minha cama. Começo a chorar enquanto escrevo. Olho pras minhas mãos, pra ter certeza que são minhas mesmo. Seu Manuel desligou a TV, não vou mais ouvir a música que despertou isso, seja lá o que isso seja. 

segunda-feira, 23 de março de 2020

I can't seem to make you mine

Acho que foi o tom de voz. Você sempre falou mansinho, e eu achava que era só algo cultural, mas no final da contas parece ser algo seu mesmo, de ser muito doce. Antes era só por te achar uma figura curiosa: o cabelo meio comprido, a figura comprida, as roupas sempre pretas e várias camadas, como se você estivesse sempre com frio. Isso parecia curioso também, porque na minha cabeça você devia estar acostumado com o clima chuvoso, frio e à atmosfera cinzenta do lugar - e aqui estou eu, agindo como se o amor ao sol e o uso de várias camadas fossem minha propriedade... Um comportamente clássico meu. Eu achava curioso, até descobrir que você era realmente tranquilo, e não era tão cheio de machismo quanto os outros. Acho que alguma coisa mudou em mim assim que descobri, com um clique. 
Então vieram os sorrisos cúmplices; compartilhados pela raiva, pelo escárnio de quem não queria estar ali, ouvindo um monte de besteiras ditas por alguém cujo ego deve ser do tamanho da Serra da Estrela. E você ficou mais doce ainda. E eu curiosa, pensando em como as coisas mudam, se algo pequeno acontece. Ou se as circunstâncias mudam levemente. 
Eu espero que você não fume, como todo mundo aqui. Não combinaria com você.
Eu aposto que você é doce em todos os sentidos.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Ariana Grande cantando Focus em meus ouvidos até entrar no cérebro

Eu não consigo me concentrar em absolutamente nada do Mestrado. Hoje passei o dia transcrevendo mais de 100 perguntas de uma prova (coisas que mãe pede e a gente faz) ouvindo Paganini, toda encurvada na cadeira dura do quarto sem uma mesa - seu Manuel tá na sala trabalhando. Sinto uma coceira insuportável (urticária nervosa? alergia da gata? uma mistura dos dois? o tempo dirá), falta de ar e o coração apertado de nervoso, e uma sensação muito forte de que o mundo do jeito que a gente conhece vai mudar. 
Segunda, na minha aula sobre exílio, minha professora passou metade do tempo falando sobre o medo, e o ser exilado que sofre como uma quebra de subjetividade quando o externo é modificado. Eu quis chorar.
É muito esquisito pensar que se eu estivesse em Porto Velho, protegida, próxima da minha família, eu não estaria sentindo metade disso.

Hoje só Chopin vai conseguir me entender.


segunda-feira, 16 de março de 2020

Epidemia, até agora.

Quarta-feira eu tive uma crise pânico. 
Eu ainda teria aula quinta. Todas as universidades do país tinham parado, menos a Universidade do Porto. Eu abria o twitter e via notícias assustadoras da Itália - gente morrendo aos montes, gente presa em casa com corpos, gente fora dos grupos de risco na UTI - e ficava sem conseguir respirar, pensando que iria faltar aula de qualquer maneira. Quarta à noite, depois de chorar e passar o dia sem conseguir respirar direito, recebo um e-mail da FLUP: aulas canceladas por tempo indeterminado. 
Na quinta de manhã, meu senhorio avisa que nós devemos nos preparar; a Merkel ("aquela que manda na Europa de verdade") avisou que entre 60-80% da população vai pegar coronavírus se as coisas continuarem como estão. Fomos ao mercado, compramos coisa pra mais ou menos duas semanas sem sair de casa pra absolutamente nada. Tudo normal. O mercado é dentro do shopping, numa área nobre da cidade, então não é cheio normalmente. Meu senhorio avisa que as redes maiores já estão com as prateleiras vazias, que os mercados estão regulando os produtos (as pessoas estão em pânico, e estocando comida pra meses) e a entrada de pessoas.
Eu e Denisse, minha colega de apartamento, fazemos um pacto: vamos não ler notícias. Ou ler menos. Já sabemos o que fazer, vamos ficar em casa e pronto. Fazemos piada, ouvimos o remix da Cardi B falando coronavírus. Começamos a ver os vídeos de italianos cantando nas sacadas, e comentamos como deve ser difícil pra qualquer pessoa da França pra baixo - italianos, espanhóis, gregos, portugueses - não abraçar ou beijar alguém. "Uma coisa é dizer pra um dinamarquês não manter contato físico. Mas imagina pra um italiano? É igual dizer pra um brasileiro. Uma hora a gente vai sentir".
Portugal começa a ficar caótico. É um país cheio de velhinhos, é relativamente desorganizado, e o sistema de saúde pública é complicado em tempos normais (principalmente pra consultas). Se mais pessoas ficarem doentes, a situação seria mais difícil que na Itália. Não existe mais maneira de escapar das notícias sobre coronavírus - é só o que passa na tv. Meu senhorio fala de álcool em gel, e eu coloco na cozinha meu vidro que comprei assim que cheguei. Quando tudo isso passar eu compro um novo.
Cancelo minha viagem pra Oslo. Compro passagens pra Itália em junho. Estou agarrada à esperança de que no final de junho isso já vai ter passado. 
Começo a ler notícias boas da China, e sobre como os países asiáticos souberam lidar melhor com a epidemia. A China mandou aparelhos e médicos pra Itália. Minha admiração pelo oriente só aumenta. O ocidente é uma grande falácia, com muito mais gente egoísta que altruísta.

Quando isso acabar, eu vou começar a estudar chinês.

sábado, 7 de março de 2020

Propice

fones de ouvido com runaway
vento frio no rosto, mãos geladas
algumas cervejas, alguns gritos de tequila seguidos de risada
ou uma noite pensando no que não foi

"And I always find, yeah I always find something wrong
You been putting up with my shit just way too long
I'm so gifted at finding what I don't like the most
So I think it's time for us to have a toast
Let's have a toast for the douche bags
Let's have a toast for the assholes
Let's have a toast for the scumbags
Every one of them that I know
Let's have a toast for the jerk offs
That'll never take work off
Baby, I got a plan


Run away fast as you can"

quinta-feira, 5 de março de 2020

Não útil

Pinto os quadradinhos da folha de anotações, enquanto olho os azulejos organizados como um tabuleiro de xadrez. Isso é realmente pra mim?, penso. Talvez eu esteja insistindo em algo que não é pra mim, e que não vai me dar futuro.
Talvez isso tudo seja pra uma casta social da qual eu não faço parte, e que ser comum não seja a norma aqui. Isso é realmente pra mim?, penso de novo.
Desistir é uma opção, mas tem tanto peso e tantas expectativas envolvidas, que praticamente não é uma opção.
Meu quarto está uma bagunça, meu computador, meu telefone, e mesmo achando que faço muito, faço muito pouco.
Isso é realmente pra mim?


Talvez eu não mereça essa chance.