Desde que eu me entendo por gente, eu sou
acima do peso. Quando você é criança, é “bonitinho” ser assim. É fofinho. “Que
criança, fofa”, todo mundo diz. Aí você vai crescendo e as pessoas começam a se
preocupar com você. “Você anda comendo muito doce e tomando muito refrigerante,
não é mocinha?” e você não entende nada. “E atividade física, você faz?”. E
você não entende nada. O negócio é: você é criança. Você não se preocupa com o
que come ou se deixa o não de fazer exercício. Você não quer se preocupar com
isso e nem deve. Preocupação é coisa de adolescente, de adulto. Não de criança.
Então os seus pais e o resto das pessoas
começam a se preocupar de verdade. Eles te levam ao nutricionista. Eu tinha
nove anos quando fui à nutricionista pela primeira vez. Nove anos. Eu ainda não
estava na puberdade, não ligava pra minha aparência. Eu só queria ler meus
livros, ter a casa da Barbie completa e poder comer quanto doce quisesse quando
fosse a um aniversário. Mas a partir dos nove anos, todos os meus passos
passaram a ser controlados. Não tinha nada que “engordasse” em casa e todas as
mães dos meus amigos estavam avisadas que eu “não podia” comer certas coisas.
Aos onze, eu tinha que anotar tudo o que comia em um caderno e todo mês passava
por um julgamento na nutricionista. “Você fez coisa errada essa semana, não
foi?”. A coisa errada era comer duas taças de sorvete ao invés de uma ou algo
assim. Comer se tornou algo errado pra mim.
Comer era errado, mas era um refúgio. Desde
sempre, por algum motivo, eu me senti pressionada. Comer me dava alívio.
Alívio. Eu só queria sentir livre desse monstro que é a ansiedade. Então eu
passei a comer escondido. Eu catava moedas em casa pra comprar balas, eu comia
“o que não devia” na casa dos outros (mas nunca sem muitas piadas do tipo “Olha
que eu conto pra sua mãe, viu!”). Desenvolvi ódio por qualquer tipo de
exercício (eu fiz ballet por alguns anos, mas saí por me sentir preterida pela
professora – que claramente não aprovava meu corpo). Eu só gostava e ler e assistir
televisão.
Vivi num “efeito sanfona” até o último ano
da escola. Assim que terminei, fiz intercâmbio. Todo mundo avisava que
intercâmbio era difícil no quesito comida; se eu não me cuidasse, provavelmente
ia engordar muito. Eu não ligava, nem um pouco. Eu só queria conhecer Londres
sem me encucar com nada. Pois bem, não me preocupei. Pela primeira vez na vida,
eu não tinha ninguém controlando o que eu fazia, que horas eu dormia e
principalmente: o que eu comia. Experimentei de tudo e comi muito do que
gostei. Voltei com quase dez quilos a mais.
Minha família se assustou. Eu estava enorme.
Concordei que precisava mudar alguma coisa (eu tinha dores nas pernas e na
costa) e fui a endocrinologista. O processo todo começava na escolha do médico:
eu já era vegetariana há aproximadamente três anos e nenhum médico concordava
com isso. Tirando anemia leve (que curava fácil com remédio) eu era saudável.
Mas ninguém queria ver isso. Eles me viam gorda e só. Achei uma médica que não
tinha problemas com vegetarianismo. Ela conversou bastante comigo, perguntou se
eu era ansiosa e me receitou alguns remédios. Entre os suplementos todos, tinha
sertralina e sibutramina. Eu sabia que eram remédios fortes, mas não tinha
ideia do quão forte eram. Tomei por alguns meses até ter que sair de casa mais
uma vez – pra fazer cursinho – e não ter disponibilidade pra continuar o
tratamento.
A verdade é que nesse período em que eu fiz
cursinho, eu não tinha tempo nem pra dormir direito. Eu tinha aula o dia
inteiro, menos de uma hora de almoço e dormia de cinco a seis horas por dia.
Levava lanches que a senhora da cozinha do lugar onde eu morava fazia. Almoçava
direito três vezes por semana. Nos outros dias eu comia sanduíche. Nos dias que
antecediam os simulados eu comia um pacote de amendoim com uma barra de
chocolate trancada na quarto. Meu ambiente de casa, apesar de ser relativamente
tranquilo, não me ajudava muito. Voltei pra casa vestido manequim 48.
Voltei a endocrinologista. Voltei a tomar
remédios. Voltei a sair de casa. Comecei a faculdade do outro lado do país,
morando sozinha. No primeiro semestre eu me alimentava bem, mas o segundo foi
uma porcaria. Eu não queria ter voltado pra Pelotas (já sabia que não queria
estudar Direito nunca mais). Entrei em depressão. Quando eu não passava dias
sem comer, comia um doce pra não desmaiar. A situação ficou insustentável.
Voltei pra casa.
Quando cheguei a Porto Velho, recebi vários
elogios sobre como eu tinha emagrecido. Hoje vejo como foram decisivos esses
elogios – e como me lascaram a vida. Veja bem: eu nunca tinha recebido elogios
sobre meu corpo. Eu fiquei feliz com algo que não deveria me deixar feliz; eu
estava doente e passava fome. Mas não ligava. Então criei o hábito de passar
fome. Em 2012 emagreci tudo o que não tinha emagrecido a vida inteira. Comecei
a jogar tênis e não sentir a fome que sentia antes.
Até que no final do ano passado, eu comecei
a ruir. Minha imunidade ficou baixíssima e eu sentia um sono incontrolável e
fraqueza. Fui ao médico e descobri que tinha anemia quase profunda. Meus pais
quase surtaram. Tomei algumas doses de noripurum na veia (pior experiência) e
minha vida virou de cabeça pra baixo: agora, as pessoas insistiam pra eu comer.
Mas as coisas não são fáceis assim. Eu não sentia mais fome. Eu não sinto, até
hoje. Se antes eu descontava toda a tristeza e a ansiedade comendo, agora eu
perco todo o apetite. Eu não acho que isso seja bom, eu tenha plena consciência
que é péssimo. Vou ter que lutar contra mim mesma por mais algum tempo, até
conseguir ser normal.
Antes de ontem fui comprar jeans e pedi um
tamanho 44. Ficou folgado. “Eu agora caibo num 42 skinny”, pensei. Passei
alguns minutos me olhando no espelho e me senti horrível. Péssima. Lembrei de
tudo que passei pra entrar na calça e tirei na hora. Talvez minha relação com
comida nunca seja normal. Talvez um dia eu consiga comer o que quero sem dizer que "cometi um erro", ou consiga me olhar no espelho e pensar "estou ótima". A única certeza que tenho, é que nunca mais vou me curvar a nada. Aquela calça 42 foi como uma epifania. Eu não vou mais me torturar pra entrar em nenhum padrão. Nunca mais.
Um comentário:
Texto perfeito! Creio que MUITAS garotas vivem esse mesmo dilema, essa mesma dor de não saber como é ser feliz consigo mesma.
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