sexta-feira, 17 de maio de 2013

Sobre o dia em que eu entrei numa calça skinny 42 (e me senti um lixo).


    Desde que eu me entendo por gente, eu sou acima do peso. Quando você é criança, é “bonitinho” ser assim. É fofinho. “Que criança, fofa”, todo mundo diz. Aí você vai crescendo e as pessoas começam a se preocupar com você. “Você anda comendo muito doce e tomando muito refrigerante, não é mocinha?” e você não entende nada. “E atividade física, você faz?”. E você não entende nada. O negócio é: você é criança. Você não se preocupa com o que come ou se deixa o não de fazer exercício. Você não quer se preocupar com isso e nem deve. Preocupação é coisa de adolescente, de adulto. Não de criança.
   Então os seus pais e o resto das pessoas começam a se preocupar de verdade. Eles te levam ao nutricionista. Eu tinha nove anos quando fui à nutricionista pela primeira vez. Nove anos. Eu ainda não estava na puberdade, não ligava pra minha aparência. Eu só queria ler meus livros, ter a casa da Barbie completa e poder comer quanto doce quisesse quando fosse a um aniversário. Mas a partir dos nove anos, todos os meus passos passaram a ser controlados. Não tinha nada que “engordasse” em casa e todas as mães dos meus amigos estavam avisadas que eu “não podia” comer certas coisas. Aos onze, eu tinha que anotar tudo o que comia em um caderno e todo mês passava por um julgamento na nutricionista. “Você fez coisa errada essa semana, não foi?”. A coisa errada era comer duas taças de sorvete ao invés de uma ou algo assim. Comer se tornou algo errado pra mim.
   Comer era errado, mas era um refúgio. Desde sempre, por algum motivo, eu me senti pressionada. Comer me dava alívio. Alívio. Eu só queria sentir livre desse monstro que é a ansiedade. Então eu passei a comer escondido. Eu catava moedas em casa pra comprar balas, eu comia “o que não devia” na casa dos outros (mas nunca sem muitas piadas do tipo “Olha que eu conto pra sua mãe, viu!”). Desenvolvi ódio por qualquer tipo de exercício (eu fiz ballet por alguns anos, mas saí por me sentir preterida pela professora – que claramente não aprovava meu corpo). Eu só gostava e ler e assistir televisão.
   Vivi num “efeito sanfona” até o último ano da escola. Assim que terminei, fiz intercâmbio. Todo mundo avisava que intercâmbio era difícil no quesito comida; se eu não me cuidasse, provavelmente ia engordar muito. Eu não ligava, nem um pouco. Eu só queria conhecer Londres sem me encucar com nada. Pois bem, não me preocupei. Pela primeira vez na vida, eu não tinha ninguém controlando o que eu fazia, que horas eu dormia e principalmente: o que eu comia. Experimentei de tudo e comi muito do que gostei. Voltei com quase dez quilos a mais.
   Minha família se assustou. Eu estava enorme. Concordei que precisava mudar alguma coisa (eu tinha dores nas pernas e na costa) e fui a endocrinologista. O processo todo começava na escolha do médico: eu já era vegetariana há aproximadamente três anos e nenhum médico concordava com isso. Tirando anemia leve (que curava fácil com remédio) eu era saudável. Mas ninguém queria ver isso. Eles me viam gorda e só. Achei uma médica que não tinha problemas com vegetarianismo. Ela conversou bastante comigo, perguntou se eu era ansiosa e me receitou alguns remédios. Entre os suplementos todos, tinha sertralina e sibutramina. Eu sabia que eram remédios fortes, mas não tinha ideia do quão forte eram. Tomei por alguns meses até ter que sair de casa mais uma vez – pra fazer cursinho – e não ter disponibilidade pra continuar o tratamento.
   A verdade é que nesse período em que eu fiz cursinho, eu não tinha tempo nem pra dormir direito. Eu tinha aula o dia inteiro, menos de uma hora de almoço e dormia de cinco a seis horas por dia. Levava lanches que a senhora da cozinha do lugar onde eu morava fazia. Almoçava direito três vezes por semana. Nos outros dias eu comia sanduíche. Nos dias que antecediam os simulados eu comia um pacote de amendoim com uma barra de chocolate trancada na quarto. Meu ambiente de casa, apesar de ser relativamente tranquilo, não me ajudava muito. Voltei pra casa vestido manequim 48.
   Voltei a endocrinologista. Voltei a tomar remédios. Voltei a sair de casa. Comecei a faculdade do outro lado do país, morando sozinha. No primeiro semestre eu me alimentava bem, mas o segundo foi uma porcaria. Eu não queria ter voltado pra Pelotas (já sabia que não queria estudar Direito nunca mais). Entrei em depressão. Quando eu não passava dias sem comer, comia um doce pra não desmaiar. A situação ficou insustentável. Voltei pra casa.
   Quando cheguei a Porto Velho, recebi vários elogios sobre como eu tinha emagrecido. Hoje vejo como foram decisivos esses elogios – e como me lascaram a vida. Veja bem: eu nunca tinha recebido elogios sobre meu corpo. Eu fiquei feliz com algo que não deveria me deixar feliz; eu estava doente e passava fome. Mas não ligava. Então criei o hábito de passar fome. Em 2012 emagreci tudo o que não tinha emagrecido a vida inteira. Comecei a jogar tênis e não sentir a fome que sentia antes.
   Até que no final do ano passado, eu comecei a ruir. Minha imunidade ficou baixíssima e eu sentia um sono incontrolável e fraqueza. Fui ao médico e descobri que tinha anemia quase profunda. Meus pais quase surtaram. Tomei algumas doses de noripurum na veia (pior experiência) e minha vida virou de cabeça pra baixo: agora, as pessoas insistiam pra eu comer. Mas as coisas não são fáceis assim. Eu não sentia mais fome. Eu não sinto, até hoje. Se antes eu descontava toda a tristeza e a ansiedade comendo, agora eu perco todo o apetite. Eu não acho que isso seja bom, eu tenha plena consciência que é péssimo. Vou ter que lutar contra mim mesma por mais algum tempo, até conseguir ser normal.
   Antes de ontem fui comprar jeans e pedi um tamanho 44. Ficou folgado. “Eu agora caibo num 42 skinny”, pensei. Passei alguns minutos me olhando no espelho e me senti horrível. Péssima. Lembrei de tudo que passei pra entrar na calça e tirei na hora. Talvez minha relação com comida nunca seja normal. Talvez um dia eu consiga comer o que quero sem dizer que "cometi um erro", ou consiga me olhar no espelho e pensar "estou ótima". A única certeza que tenho, é que nunca mais vou me curvar a nada. Aquela calça 42 foi como uma epifania. Eu não vou mais me torturar pra entrar em nenhum padrão. Nunca mais.

Um comentário:

Gee Alves disse...

Texto perfeito! Creio que MUITAS garotas vivem esse mesmo dilema, essa mesma dor de não saber como é ser feliz consigo mesma.