domingo, 3 de novembro de 2024

O tempo em minhas mãos

Eu nunca tive pés macios ou mãos macias. 

Lembro de quando tinha 7 anos e viajei de carro pela primeira vez. Nós saímos de Rondônia e fomos até Recife com algumas fitas cassetes (eu lembro direitinho da trilha sonora de Porto dos Milagres por conta dessa viagem) e alguns travesseiros pra que eu meu irmãos dormíssemos no carro. Foi nessa viagem que eu senti meu corpo como "errado" pela primeira vez, quando o guia turístico de Salvador me chamou de gordinha porque eu usei uma blusa do Olodum que mostrava minha barriga (e nunca mais mostrei a barriga desde então, e passei o resto da viagem me cobrindo. Foi minha primeira vez vendo o mar, e eu só me preocupava em cobrir a barriga). Foi também nessa viagem que eu conheci uma menina franco-brasileira na pousada em que ficamos em Barra de São Miguel, e descobri que minhas mãos não eram femininas. Nós brincamos por alguns dias na piscina da pousada, e em algum momento ela fez aniversário. Os pais dela me pediram pra distraí-la enquanto eles preparavam um bolo com refrigerante, e eu lembro de estarmos no quarto e eu pegar na mão dela pra brincar de roda. As mãos dela eram macias como eu nunca tinha visto - as minhas não eram, as da minha mãe não eram, as da minha avó não eram.
Eu lembro de sentir vergonha. O meu corpo era tão errado que até minhas mãos eram erradas.

Minha mãe sempre disse que eu tinha dedos longos como os da minha tia. 
Minha mãe nunca pintou as unhas das mãos, porque até hoje ela lava metade de todas as roupas de todo mundo de casa no tanque. Só calça jeans, toalhas e roupas de cama vão pra máquina de lavar - o resto é todo lavado na mão. Então ela nunca pintou as unhas da mão, nunca hidratou as mãos e nem nunca ligou muito pra elas. Os dedos dela são curtos e ligeiramente engelhados, as unhas estão sempre bem curtas e lixadas. Eu gostava de ter mãos diferentes da minha mãe. Comecei a pintar as unhas com 11 anos, e sempre que eu podia eu deixava as unhas compridas. Esse era o meu traço feminino. Eu podia ser gordinha, eu podia ter as olheiras mais fundas entre todos os meus amigos, eu podia andar com o cabelo assanhado quase o tempo todo. Mas eu tinha dedos compridos e unhas compridas. Eu tinha mãos de pianista. Pelo menos nisso eu era feminina. Até que um dia no intercâmbio, a moça japonesa que morava comigo fez unhas de gel em mim. Era uma combinação de purpurina azul e dourada, e eu amei tanto que tirei uma foto e mandei pra todos os meus amigos que estavam me acompanhando estourar o limite do cartão de crédito da minha mãe em Londres. O único comentário que me marcou foi um "lindo! Mas acho que você precisa dar uma hidratadinha na sua mão, né?". Eu hidratava minhas mãos todos os dias, por causa do frio. Não era falta de hidratação - era só a minha mão se tornando mais parecida com a mão da minha mãe, mais enrugada. 
Minhas mãos já não era femininas o suficiente.

Minha mão direita sempre foi problemática. 
Como eu escrevo e faço praticamente tudo com ela, eu tenho vários calos nos dedos. Uma vez eu tive uma verruga estranha no dedo anelar, e logo em seguida cortei o dedo médio com uma garrafa de suco de uva. Mas minha mão esquerda era linda. Eu consigo pintar as unhas da mão esquerda com mais destreza, então elas sempre pareciam estar mais arrumadas. Não tinham nenhum corte, nenhuma cicatriz. Minha mão esquerda era uma mão meramente ilustrativa, até eu quebrar duas falanges enquanto bricava de rouba bandeira na rua. Eu já era adulta, já estava na faculdade. Depois de sair de uma cirurgia horrível (eu acordei tremendo de frio e o cirurgião estava ouvindo Coldplay, alucinei horrores com o sedativo que me deram, não dormi a noite inteira porque fiquei paranoica), a primeira coisa que pensei foi que minha mão não seria mais uma mão meramente ilustrativa. Ela teria cicatrizes. Passei 6 semanas com a mão imobilizada com fios de kirschner, e mais alguns meses fazendo fisioterapia. Eu lembro da dor lancinante quando eu tentava mexer os dedos depois de tirar os fios, e da sensação de vitória quando consegui fechar a mão. 
A mão já não era mais perfeita, mas agora combinava com o resto do meu corpo - não era pefeiro, mas tinha uma história.

Há algumas semanas eu notei que tenho calos permanentes nos dedos dos pés. 
Eu lembro de perguntar pra minha mãe porque ela tinha calos tão grossos nos pés. Ela lixava, hidratava e os calos continuavam lá. Eu lembro de me achar sortuda por não ter esses calos, apesar de achar meus pés feios - eu achava que eles tinham um formato estranho e apesar de não ter calos nos dedos, os calcanhares já davam sinais de que rachariam no futuro. Eles racharam, os dedos calejaram. Em Julho desse ano, eu até comprei uma daquelas máscaras que fazem peeling, mas a única coisa que elas fizeram foi deixar rastros de pele por toda a casa. Então numa quarta-feira fria, eu entendi que teria calos dos dedos dos pés como a minha mãe. Toda vez que toco nos pés, eu lembro da minha mãe. Minhas mãos também são como as da minha mãe agora, e consequentemente são como as da minha avó. Os meus dedos enrugados não tem as mesmas queimaduras que os dedos da minha avó tem, porque ela fazia doces pra vender na feira. Mas eles tem um pouco dela. Minha avó pode morrer a qualquer momento desde o ano passado. Todas as notificações de mensagem, todas as ligações que eu recebo são sempre ligeiramente assustadoras, porque podem ser notícias da minha avó. Mas quando eu pego o telefone e olho para as minhas mãos parecidas com as dela, eu lembro que a vida é assim mesmo.
Minha avó é mais forte e feminina que qualquer mão macia. 


quarta-feira, 12 de junho de 2024

360

Numa quinta-feira de abril, eu mandei o e-mail desistindo do doutorado. 
Foram meses de preparação. Eu escrevi o e-mail no word e deixei salvo. Algumas semanas depois eu copiei e colei o texto no gmail, que ficou como rascunho por semanas. Um dia de manhã, eu abri a pasta de rascunhos, enviei e desliguei o celular. Às vezes eu acho que essa preparação começou no dia 7 de outubro de 2023, quando começou a guerra. Parte do meu cérebro tomou uma decisão ali. Ali também começou meu processo de luto pessoal, por uma carreira que nunca cheguei a ter, e nem sei se um dia eu sonhei de verdade em ter. 
Talvez eu só queira um diploma, um pedaço de papel, pra provar que sou alguma coisa.
Desde então, eu me sinto nadando em alto mar.
Alguns dias depois meu marido me sugeriu fazer o CELTA, pra conseguir outro pedaço de papel que me abriria as portas. Por um mês eu fiz o percurso de Anděl a Budějovická, e quase todos os dias eu ouvia Marinheiro só e chorava um pouco - metade do choro era estresse por conta do curso (agora faço parte do clube "Cambdridge me fez chorar"), metade era por medo; "marinheiro marinheiro, quem tem ensinou a nadar? ou foi o tombo do navio, ou foi o balanço do mar).
Eu nunca soube muito bem pra onde eu tava indo, mas agora tem um mundo aqui na minha frente.

Semana que vem eu vou caminhar pelo centro pra me sentir fazendo o mesmo caminho que o Kafka fazia. 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

mantra 3.1

 eu vou conseguir mandar esse e-mail

e eu vou conseguir recomeçar minha vida do zero

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Blackbird

 Sábado passado eu casei. Alguns amigos que moram em São Paulo vieram pra cá, minha melhor amiga e meus pais vieram de Porto Velho, e na hora da cerimônia mesmo eu senti vontade de fugir pra Gretna Green.

Eu realmente não gosto de grandes cerimônias, ou de todos os olhos voltados para mim. 

Eu também estou há milímetros de tomar uma das maiores decisões da minha vida. E vai ser só minha.


"All your life, you were only waiting for this moment to arrive.

Blackbird: fly. Into the light of a dark, black night."

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

No milésimo dia desse mês quase eterno

 Tomei minha primeira multa de trânsito e 4 pontos na carteira (e provavelmente em menos de um mês a outra multa chega) e estou há algumas horas abrindo o aplicativo do Gmail em estado de negação. "Nunca mais vou dirigir" - é o que se passa na minha cabeça (realidade: semana que vem preciso pegar a estrada de novo pra buscar alguém no aeroporto. Aliás, nem preciso ir tão longe: preciso pegar o carro na sexta-feira para ir à fisioterapia, e na volta preciso passar no mercado mais barato para comprar atum enlatado). 

Depois dos 25 minha vida virou um esquete de comédia em que a protagonista diz "nunca mais vou fazer isso!", e logo em seguida corta pra ela fazendo exatamente isto. Meus pais reclamam sempre que eu só faço o que quero, mas no meu coração eu sinto que estou sempre fazendo coisas que odeio (talvez eles digam isso porque eu só não faço o que eles querem). 

Estou na segunda sessão de fisioterapia e meu pé dói menos. Hoje eu me peguei esticando os pés e a dor usual que sinto não apareceu. Tive um momento de revelação muito parecido com o momento de revelação que tive depois de 2 meses de fisioterapia depois de operar os dedos - uau, fisioterapia funciona, o mundo é lindo, eu amo a ciência!

Hoje também me senti fracassada, e já comecei a pensar no banzo que a Europa vai me causar em alguns meses. E como sempre, eu acalentei essa tristeza, pensando ali que não tenho ninguém por mim em Praga além do Matous. Tudo o que quero esse ano é entrar em acordo com essa realidade.